esa 2009 Português texto 1

Texto de Intrepetação da prova de Protuguês da Escola de Sargento das Armas do ano 2009

Consulte o texto de intrepetação quando julgar nescessário

Critério

 1 Os náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdidos em alto-mar, tinham comido as

 2 últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência.

 3 — Mulheres primeiro – propôs um cavalheiro.

 4 A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: que critério usar para

 5 decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome?

 6 — Primeiro os mais velhos – sugeriu um jovem.

 7 Os mais velhos imediatamente se uniram num protesto. Falta de respeito!

 8 — É mesmo – disse um –, somos difíceis de mastigar.

 9 — Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres?

10 — Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver – disse um jovem.

11 — E vocês precisarão de nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra – disse outro.

12 - Então os mais gordos e apetitosos.

13 — Injustiça! – gritou um gordo. – Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de

14 sobreviver de forma natural do que os outros.

15 — Os mais magros?

16 — Nem pensem nisso – disse um magro, em nome dos demais. — Somos pouco nutritivos.

17 — Os mais contemplativos e líricos?

18 — E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? – perguntou um

19 poeta.

20 — Os mais metafísicos?

21 — Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá – disse um metafísico, apontando para o alto

22 – e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.

23 Era um dilema.

24 É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo

25 de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros de segunda e terceira

26 classe, que ocupavam todo o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um perdeu a paciência e,

27 já que a fome era grande, inquiriu:

28 — Cumé?

29 Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco,

30 também recebeu uma explicação.

31 — Estamos indecisos sobre que critério utilizar.

32 — Pois eu tenho um critério – disse o passageiro de segunda.

33 — Qual é?

34 — Primeiro os indecisos.

35 Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:

36 — Não vamos ideologizar a questão, pessoal!

37 Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.

38 — Náufragas e náufragos – começou. – Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta

39 quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e

40 ateus… É entre maioria e minoria.

41 E, apontando para a primeira classe, gritou: — Vamos comer a minoria.

42 Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era

43 primeira em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício.

44 Não podiam comer toda a primeira classe, indiscutivelmente, no entanto. Ainda precisava haver

45 critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico.

46 E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de

47 quem sabia que era o único indispensável a bordo.

48 O fim desta história admonitória é que, com toda a agitação, o barco salva-vidas virou e todos,

49 sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que, como se sabe, não têm nenhum critério.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. O Nariz & outras crônicas. Para gostar de ler, vol. 14. São Paulo: Ed. Ática, 1997)

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